D. Hilda, mais do que uma talentosa escritora, foi uma grande parceira da Revista Foco ao longo de aproximadamente 15 anos. Escrevia, mensalmente, historiazinhas inéditas para a criançada. Historiazinhas, estas, muito apreciadas e bem aproveitadas em trabalhos escolares que viravam teatrinho, jogral, exposição em cartazes nos corredores das escolas, principalmente na idade de alfabetização.
Com toda a sua sensibiidade e criatividade, D. Hilda transformava fatos simples do cotidiano em situações que a criançada muito se identificava. Ela sabia, como poucos, interpretar e transformar em histórias os sentimentos e as emoções do universo infantil.
Vai deixar muita saudade... e o jeito mais simples de matar essa saudade é ler sua vasta obra que deixou para nós. Aliás, um rico e belo legado.
Seguem abaixo algumas “palavras” de familiares e amigos:
Celso Faria violonista
Conheci a professora e escritora Hilda Mendonça no dia 28 de janeiro de 1994. Podem me perguntar: se lembra do dia, mês e ano? Claro que sim. Nesta mesma ocasião ocorreu meu debut como violonista - tenho ou não razão para me recordar!
Vou explicar: estava de férias em Passos e recebi um convite da Secretaria de Educação, Lazer e Cultura para me apresentar em uma solenidade que ocorreria no anfiteatro da Casa da Cultura, na Praça Geraldo da Silva Maia. Eu já tinha o violão como amigo inseparável e, nem preciso dizer que fiquei extremamente feliz. Pois bem, nesta mesma solenidade, a Hilda, que estava de passagem pela cidade, lançaria seu livro "Exercício de Viver". Foi uma noite muito agradável - música e literatura no mesmo espaço. Nunca me esquecerei quando terminei minha apresentação e ela me pediu: "toca a 'Marcha dos Marinheiros'", composição do Canhoto, Américo Jacomino - como esta obra estava "debaixo dos dedos", prontamente atendi.
Nossos caminhos não se cruzaram até que, em 2018, realizei o "I Festival de Música de Câmara de Passos". Hilda compareceu aos dois recitais na Capela do Educandário Senhor Bom Jesus dos Passos e pode ouvir músicas de grandes compositores - Bach, Paganini, Villa-Lobos, Händel, Castelnuovo-Tedesco, entre outros. A partir daí, nosso contato foi reativado e, eram frequentes minhas visitas à sua casa, quando eu estava em Passos. Chegamos a trabalhar juntos em um projeto, o ciclo de "Canções de Amor e Vida", que conta com a música do compositor Jônatas Reis, além do soprano Lilian Assumpção. Espero, em breve, poder mostrar a todos este lindo cancioneiro que revela todo o sentimento poético da grande Hilda Mendonça!
Regina Sales Lemos Oliveira, sobrinha.
REGINA SALES LEMOS OLIVEIRA
Sobrinha de D. Hilda Mendonça
Não se apaga uma estrela que nasceu para brilhar.
Podem tentar, insistir, mas aviso: desistam. Essa nasceu para o brilho, para a vitória.
Hilda Mendonça, menina pobre, interiorana. Contrariando todas as perspectivas da vida apagada e pacata, saiu do remanso, deixou o colo natal, e foi para o mundo. Venceu-o. Conquistou a cidade grande. Conquistou a Capital do País: Brasília.
Lá estará para sempre nos corações de alunos, colegas professores, amigos, escritores, nomeando biblioteca de escola pública, onde trabalhou por anos. Membro fundadora da Academia Taguatinguense de Letras. Seu rosto estampado em caricatura, nos muros de sua sede, no centro da cidade, para apreciação de curiosos: Quem é ela? Ela é escritora, poetisa, contista, folclorista.
Voltou gloriosa para sua Terra, continuando sua história, que ficará marcada para sempre nessa cidade de Passos, onde iniciou e ensinou os primeiros passos àqueles desejosos de também escreverem histórias, poemas, alçar voos na literatura, idealizando com esses a Associação de Escritores, começada na garagem de sua aconchegante residência, encantando a tantos com sua criatividade e intimidade com as palavras.
Declarou seu amor às pessoas e a sua Terra. Alguns de seus poemas: Passos, Ventania, Minas, Rio Grande.
Seu nome? Não esqueçam jamais: Hilda Mendonça.
Atenciosamente, sua sobrinha Regina.
RAQUEL MAJELA LEMOS
Hilda Mendonça, irrequieta professora
Por William França, 55, jornalista e arquiteto
Hilda Mendonça, ou Tia Hilda, foi uma professora sui generis: ela “passava de ano” junto com seus alunos e, assim, pôde (literalmente) acompanhar o nosso crescimento. Foi minha professora de Português desde a 4ª série primária, quando eu tinha 10 anos, e me acompanhou por cinco anos consecutivos. Terminei meu 1º Grau escrevendo corretamente. E bem.
Digo que foi ela quem “inoculou” em mim o vírus do Jornalismo. Isso porque ainda criança eu virei “repórter” de O Moita, jornalzinho feito em mimeógrafo a álcool, que contava o nosso cotidiano escolar. Depois, eu já na 6ª série, ele se tornou Stellartee passou a ser feito em gráfica. Desde lá, nunca mais deixei de escrever notícias.
Mas a Tia Hilda não me ensinou apenas a escrever bem. Ela me ensinou, por meio de atitudes, que a gente tem de se comprometer a fazer as coisas corretamente, a respeitar os outros, a correr atrás do espaço próprio, a realizar nossos sonhos. De entender que todos os lugares são feitos por sua cultura e por sua gente.
Nos tornamos amigos. Mantivemos o hábito de nos escrever, por carta. Ela em Minas, eu em Brasília. Ela sempre enviando exemplares dos seus contos, poemas e histórias infantis. Eu, relatando minhas experiências mundo afora. A última, recebi dois meses antes de ela nos deixar. Foi linda, meio que um balanço do que havíamos passado, em 46 anos desde que ela me conheceu, moleque irrequieto.
Tia Hilda deve estar agitando o céu, com algum tipo de intervenção cultural, lendo poemas para os santos e anjos. Ela também sempre foi irrequieta. Ainda bem...
William França é sobrinho de D. Hilda Mendonça.
Reside em Brasília.
HILDA MENDONÇA E O DIFÍCIL OFÍCIO DE CONTAR HISTÓRIAS
Por João Carlos Taveira*
Quando terminei a leitura dos dez contos que compõem o belo volume, intitulado “Redemoinho do Tempo”, de Hilda Mendonça (1939-2021), lembrei-me de que há muito tempo havia afirmado, peremptoriamente, diante de uma circunstância similar, que a arte não é apenas uma representação estática das emoções do homem, nem de suas ações. Toda a sua magnitude e misteriosa aspiração residem no gesto factual, sim, e na reflexiva compreensão do mundo, mas de tal modo que a sua concepção fique imediatamente sujeita ao exercício da técnica. Ou seja, os nossos sentimentos sozinhos pouco ou quase nada nos adiantam em nossa necessidade e vontade de criar, ou de expressar.
Hilda Mendonça, com seu estilo cristalizado, sua técnica despojada, vem socorrer-me nesta afirmativa, pois condensa, entre linguagem e símbolos, toda uma mescla de caracteres humanos, ao longo da construção elaborada de sua narrativa ficcional. Quer dizer, não resvala na banalidade meramente descritiva. Conhece muito bem as exigências técnicas dos gêneros (e a escritora mineira transita em vários deles) em que se manifesta criativamente e, “et pour cause”, se propõe a revelar aos seus leitores.
Os dez contos que formam o corpo deste livro, ao mesmo tempo em que são histórias díspares e isoladas entre si, também podem ser fragmentos de uma história única, cujo universo precípuo, motivador, estará sempre reduzido ao universo incompreensível e avassalador das personagens descritas em cada circunstância. Fato que, de certa maneira, aproxima o livro de “Vidas Secas” do nosso grande Graciliano Ramos. Em síntese, uma procura desesperada (o “leitmotiv”da escritora) de salvar-se, partindo da compreensão e aceitação do que está perdido, do que está supostamente perdido, numa tentativa de fragmentação de seu discurso narrativo.
No conto “Fantasmas noturnos” há um trecho bastante esclarecedor:
“Papai está roncando. Que ingenuidade! Ah, se ele soubesse quem será o lobisomem e quem será a mula-sem-cabeça desta noite! Também, papai só gosta de dormir e trabalhar. Será que ele não tem medo? Nem sei o que ele pensa! E essa diaba de noite que não acaba mais! E esse danado de sol dorminhoco! Queria ver o lobisomem Olegário na frente dele, só para ter certeza se ele ainda continuava a dormir. Também, o sol nunca viu essas coisas! A lua, sim, ela sabe. E como sabe. É ela quem vê as monstruosidades que aqui acontecem...”
A divagação é de uma menininha angustiada pela ausência do sono, pelo medo de fantasmas, completamente à mercê de sua própria precariedade, a sonhar acordada com o raiar do dia, esse benfazejo espantador de lobisomens e mulas-sem-cabeça que povoam as mentes e os corações férteis dessas criaturinhas a que chamamos de crianças.
Em “O retrato”, outro conto com nuanças autobiográficas, a necessidade de uma recomposição simbólica imediata, via personagem/narrador, eclode de forma quase idêntica à do primeiro caso, aludido no parágrafo anterior: “À noite rezávamos pelo defunto daquele dia, e íamos dormir, ou melhor, iam. Eu passava a noite em claro. Modo de dizer, pois a lamparina estava sempre apagada.”
Em Hilda Mendonça, transparentemente, cristalinamente, todos os percalços e obstáculos da vida retratada, por meio do suporte da ideação lírica, não deixam o campo das hipóteses oníricas para assumirem posturas ou compromissos com a realidade vivida. Tudo é a verdade de uma suposta mentira. A sua responsabilidade criativa resulta do apenas exercício de sinceridade. E essa capacidade fluídica, muito bem caracterizada nos fantasmas, espíritos-do-outro-mundo, mulas-sem-cabeça, geralmente permeia a sua técnica discursiva, no que concerne ao texto literário. A autora que é também professora, folclorista e poetisa se compraz diante da sua própria (re)criação de ser e de haver sido, enquanto identidade e fantasia.
Em “Puberdade interiorana”, como em “Enlace matrimonial”, do ponto de vista formal, podemos captar alguma despreocupação inventiva na lide da angústia das frustrações sexuais, porque foi embutida na formação dos seres que compõem seu universo, de ficção ou não. Mas o resultado final é bastante positivo.
Já no conto “Olho por olho”, temos a chave de todo o mistério — aqui apresentado mais em forma de indignação do que de busca de uma possível revelação —, o mesmo mistério que Hilda descerra, gradualmente, ao longo dessas peças uniformes, uníssonas, com toda a sua carga de emotiva sutileza.
Eis-nos, portanto, diante de uma universalidade de valores estéticos, tão bem delineados na simplicidade da província: argila e catarse da contista que surgiu um dia e há muitos anos — plena de voo — para o difícil ofício de contar histórias. Hilda, que não está mais entre nós, deixou-nos seguramente um legado precioso: foi professora completa, dentro e fora das salas de aula, e escritora de recursos cada vez mais raros entre os escritores das novas gerações.
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*João Carlos Taveira, poeta, ensaísta e crítico mineiro radicado em Brasília, é membro da Academia Brasiliense de Letras, da Academia de Letras do Brasil, da Academia Taguatinguense de Letras (sócio fundador) e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Autor de vários livros publicados, é colaborador especial do Jornal Opção, de Goiânia-GO.